Os justos não falam: a dor grita I


Sensível, ele passou todos os anos a espera de uma sentença que era certa.
Soube de tudo antes de ser comunicado. No principio do fim, os oficiais cumpriram os trâmites, assinaram os papéis, chamaram a santidade, exigiram todas as pompas para que a morte fosse mais séria. Não se brinca com a morte.
Perguntaram ao réu qual seria seu último desejo. Ele disse, sensível:
___Quero um papel e um lápis.
Concederam. Eles eram bons, tão bons que concediam um desejo, o último.
Ele ajoelhou-se,com as mãos algemadas e os pés presos. Rabiscou, leu, pensou, sorriu, inspirou e amassou o papel vagarosamente. De longe um dos rapazes da limpeza, católico, daqueles que amam o irmão, lembrou-se e murmurou Colossenses 4, alguns seis versículos.
Outro vigia observando tudo, perguntou com ar curioso e questionador.
___Quer que entreguemos a alguém. Ninguém veio ver seu espetáculo, mas você deve ter alguém lá fora, na vida.
___Não. Não era um bilhete. Não era carta.
Emudeceu-se com sensibilidade e semblante como o de um menino que entra em uma chusma de borboletas.
Levaram-no para a cadeira de mortes. Sentaram com cuidado e ajeitaram as milhões de correis sangrentas que ali estavam. Colocaram venda, fizeram prece, olharam com olhos carnívoros, riram disfarçadamente e com um tom irônico. O vigário rezou meia dúzias de améns e como autoridade divina, autorizou a higiene.
Faíscas invisíveis...Tremores de dor e alívio. Uma saliva grossa escorreu pelo queixo do marginal sensível, molhou o macacão azul e congelou-se na altura do umbigo. Estavam enfim saciados daquela vontade de matar alguém culpado. Eles eram os garis da segurança, faziam a higienização social mais cruel. Eram o Deus da morte, aquele que não tem amor e nem justiça.
Levaram o corpo, arrastado, se na vida não teve dignidade respeitada, na morte não precisavam rebuscar os sentidos. Pela sala musgo ecoava o som dos sapatos sendo arrastados pelo chão do corredor.
Era menos um marginal sensível. Menos um. Menos. Menos um. Menos aquele, que era mais um, dos muitos uns que ainda passariam por ali.
No chão, o papel amassado dormia no silêncio de palavras não ditas.

7 Response to "Os justos não falam: a dor grita I"

  1. Dayvson Fabiano says:
    8 de abril de 2012 às 20:38

    Querido, que texto forte e profundo. É sempre bom ler o que você escreve. Amei...Abreijos!!!

  2. Tiago Rocha says:
    9 de abril de 2012 às 10:44

    Adorei.... Bem reflexivo, interpretativo e muito inspirador...
    Perfeito, continue assim....

  3. Anônimo Says:
    9 de abril de 2012 às 11:41

    Isso me lembra muito meus estudos no campo da AD e Foucault. A ordem do discurso, que manipula o que nós dizemos, ou até mesmo cala a nossa vontade de falar. Fica bem claro que somos excluídos quando não nos encaixamos nessa ordem que nos dita como devemos nos portar. Está acontecendo bastante em nossos dias. E a educação, infelizmente, tem sido uma das maiores prejudicas nesse jogo de poder.

  4. Leandro Cordeiro says:
    9 de abril de 2012 às 12:10

    Outro dia eu lia sobre a sentença de morte e suas falhas, consequências e benefícios (do ponto de vista do Estado, claro!).
    Quantas injustiças são cometidas, quantos inocentes são condenados! A forma de repressão, onde matamos "uns" para que sirvam de exemplos a tantos, é lamentável!
    Lembrei-me do filme "A Vida de David Gale", que fala sobre isso.
    Belo texto! Parabéns.

  5. Anônimo Says:
    9 de abril de 2012 às 12:21

    Meus parabéns... texto muito interessante, profundo, e principalmente critico.

  6. Elivelto Cardoso Says:
    9 de abril de 2012 às 16:01

    Um turbilhão de sinônimos, poderia descrever a impecabilidade de suas reflexivas linhas, mas de tantos me apego a um - Perfeito...

  7. Hugo says:
    11 de abril de 2012 às 17:59

    É interessante observar o papel da religião, o egoismo e a falsidade que se envolvem de uma maneira intrigante e impossísvel de não pensar na nossa cegueira diante o que é considerado "santo". Usar de uma desculpa com fins religiosos pertenceu ao passado da Igreja católica para sentenciar erôneamente milhares e milhares de pessoas, as chamadas "Guerras Santas" é um exemplo claro desse tipo de segmento. Hoje, enganar para arrecadar dinheiro e se auto beneficiar é uma prática que está disseminada na sociedade contemporânea, mas em nome da fé isso é disfarçado e centenas e milhares de pessoas ainda se enganam. Uma coisa é sem dúvidas inquestionável, a fé é uma força poderosa que vem sendo usada de modo muito pevertido a cada dia mais, textos como este que acabo de ler é uma forma sutil de dizer que precisamos tomar cuidado e que fé não pode ser confudida com fanatismo.