Lira delirante (José Humberto dos Anjos)


[paráfrase a Mario Quintana]




Se tu me amas, ama-me baixinho,
Não grites fremente teu amor, pois ao grita-lo, podes atrapalhar o canto dos pássaros
E ele é muito verdadeiro para ser oprimido neste mundo repleto de pseudo-amores.

Ama-me como a primavera ébria
Como os cravos amarelos que mesmo na dor ornam o defunto que cobrem.
As lágrimas que caem, mas hidratam a face que hora sofre.

Ama-me não com tua volúpia languida,
Não com teu espasmo frio,
Com teu desejo (in)desejoso.

Somente ama-me. Mais que a ela, ama-me!
Mais que aos seios soerguidos, acesos, alvos.
Mais que ao corpo esguio e atraente.

Mais que a cavidade que lhe dá prazer,
Mais que tua sexualidade
Mais que os corpos que possui, que te possuem e te alimentam.

Ama-me baixinho,
Mas não me ame em segredo.
Apenas ama-me! E já serás muito para alguém que não sabes sequer falar a verdade como os pássaros.

Os justos não falam: a dor grita I


Sensível, ele passou todos os anos a espera de uma sentença que era certa.
Soube de tudo antes de ser comunicado. No principio do fim, os oficiais cumpriram os trâmites, assinaram os papéis, chamaram a santidade, exigiram todas as pompas para que a morte fosse mais séria. Não se brinca com a morte.
Perguntaram ao réu qual seria seu último desejo. Ele disse, sensível:
___Quero um papel e um lápis.
Concederam. Eles eram bons, tão bons que concediam um desejo, o último.
Ele ajoelhou-se,com as mãos algemadas e os pés presos. Rabiscou, leu, pensou, sorriu, inspirou e amassou o papel vagarosamente. De longe um dos rapazes da limpeza, católico, daqueles que amam o irmão, lembrou-se e murmurou Colossenses 4, alguns seis versículos.
Outro vigia observando tudo, perguntou com ar curioso e questionador.
___Quer que entreguemos a alguém. Ninguém veio ver seu espetáculo, mas você deve ter alguém lá fora, na vida.
___Não. Não era um bilhete. Não era carta.
Emudeceu-se com sensibilidade e semblante como o de um menino que entra em uma chusma de borboletas.
Levaram-no para a cadeira de mortes. Sentaram com cuidado e ajeitaram as milhões de correis sangrentas que ali estavam. Colocaram venda, fizeram prece, olharam com olhos carnívoros, riram disfarçadamente e com um tom irônico. O vigário rezou meia dúzias de améns e como autoridade divina, autorizou a higiene.
Faíscas invisíveis...Tremores de dor e alívio. Uma saliva grossa escorreu pelo queixo do marginal sensível, molhou o macacão azul e congelou-se na altura do umbigo. Estavam enfim saciados daquela vontade de matar alguém culpado. Eles eram os garis da segurança, faziam a higienização social mais cruel. Eram o Deus da morte, aquele que não tem amor e nem justiça.
Levaram o corpo, arrastado, se na vida não teve dignidade respeitada, na morte não precisavam rebuscar os sentidos. Pela sala musgo ecoava o som dos sapatos sendo arrastados pelo chão do corredor.
Era menos um marginal sensível. Menos um. Menos. Menos um. Menos aquele, que era mais um, dos muitos uns que ainda passariam por ali.
No chão, o papel amassado dormia no silêncio de palavras não ditas.